4 de dez. de 2009

APARÊNCIAS


Caio Martins

Saiu do “jeans” com certa relutância. Tirou a blusa e olhou-se no espelho: ridícula! Meteram-lhe um penteado lambido e colado, porém não havia mais tempo de soltar os cabelos negros, em minutos viriam buscá-la. Vestiu um tomara que caia longo, azul profundo pespontado de rococós pretos, uns pontilhados metálicos e maldita armação de arame no peito. Os pobres seios ficariam espremidos numa fôrma mais parecida com quilha de barco, molde de concreto, apertada para segurar o peso do resto do toldo...

Enquanto se paramentava, viu a tia a observá-la. Perguntou “que foi” só com um gesto de cabeça. Disse-lhe que se havia transformado numa linda mulher, a patinha feia de outrora. Observou-se ao espelho e detestou o que viu. A roupa, alugada, pesava e tolhia-lhe os movimentos. Mas, era madrinha num casamento, não podia destoar das outras mulheres da família, excitadas com o “glamour” a prazo fixo, de eras passadas. Não havia, ali, condições de discutir. Deixara-se levar.

Percebeu claramente nos olhos do marido, elegante em terno próprio, o desgosto e desapontamento, mas disse-lhe que estava linda... Não sabia mentir. Chamou-o de babaca, pôs brincos e colar de vidro e resistiu firmemente à vontade de tirar tudo, meter-se nos velhos “jeans”, tênis e camiseta desbotada. Retocou a maquilagem, respirou fundo e imperou: - Vamos embora! - Acrescentaria “seu cretino”, porém reservou-se. Na saída, o cão latiu-lhe. Parecia estranhar, inconformado.

Na festa portou-se com sobriedade, riu, brincou e elogiou, diplomática, os torpes manequins da metade do século passado em que suas amigas e primas se transformaram, radiantes; dançou linda valsa muda com o marido e passou o tempo puxando a armadura dos seios para cima. Ao menos, os sapatos eram seus e conheciam-lhe os pés, não a torturaram muito. Estava tensa. Aquela farsa não lhe correspondia, porém alguma coisa mudara. Ela mudara, os olhares ao redor também.

Algo como eletricidade percorreu-lhe o corpo. Via as pessoas como estranhos, surreais, e a todos conhecia desde criança. Farsa... jogavam aristocrático papel, de pretensas damas e cavalheiros que não eram, eram singelos. Simulavam outro mundo, universo, planeta, não sabia... Pegou-se numa profunda tristeza, na volta. Despiu-se agitada, dobrou a fantasia cuidadosamente, meteu-se no chuveiro e suspirou com alívio, talvez o maior que sentira na vida. Havia um cheiro bom de café, ao sair enrolada em toalhas.

Ainda de gravata não a olhou, despejando água quase fervente no coador de algodão. Há muito tempo ele não fazia café. O cão o observava, atento; igualmente a ignorou. Veio mansinha e abraçou o homem por trás, com ternura. Um olhar e o bicho saiu, de má vontade. Feito o café, ele voltou-se, percorrendo-lhe rosto e corpo com um olhar irônico. Deixou as toalhas caírem. Foi ao beijo, carícias, toques e abraços com vontade, e começou a rir: ridículo, o espetáculo. Ela nua, ele emperiquitado, as xícaras muito antigas, tempos da avó.

- Ôi! Que bom, ter você de volta... Ainda me ama?
- Não sei... Foi pior você, com sua gravata cafona... E você, me ama?
- Vai saber! Quando passar o susto, lhe digo... “princesa”!
- Você é um canalha... tinha que me impedir... “princesa” é a mãe! Tire essa porcaria!

Rompidas as aparências perceberam, ao menos no momento, a simplicidade mágica das coisas como elas são, na linguagem cúmplice dos corpos. Mesmo se com prazo determinado de uso, como um traje alugado.

(img: cvm - trajes a rigor)

6 comentários:

  1. No coments ...rss...
    Acho melhor falar mesmo...MUITO BOM!

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  2. E a estranha, misteriosa e doce força do amor terminou vencendo!
    Muito bem criado, Caio. Imaginação foi o que não faltou.

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  3. Guilherme Jr.6/12/09 14:11

    Caio, não há que mudar nada, apesar de parecer escrito às pressas, como quem pega uma batata quente.
    É realmente surpreendente os sacrifícios a que as mulheres se submetem em nome de aparências.
    A "patinha feia" impera ao transformar-se numa "linda mulher". Mas a relação entre o "jeans com blusa" e o longo "tomara que caia" no confronto com o terno e gravata inverte os papéis na cozinha. Ela nua e propícia, ele fantasiado e reticente.
    Tira de cena a única testemunha (um animal) só com o olhar e mostra a precariedade dos laços tidos como "eternos". A rachadura se apresenta nas frases: "Algo como que eletricidade percorreu-lhe o corpo. "... "Farsa..."... "Ela mudara, os olhares ao redor também".
    O que parece ser um conto simples tem conteúdo denso nas entrelinhas, estilo próprio do autor, mostrado na frase "Pegou-se numa profunda tristeza, na volta". Ninguém afirma que ama... Fim das farsas?
    A referência final ao relacionamento como um "vestido (traje?) alugado" (impessoal, artificial, incômodo e circunstancial) revela a inconsistência. A imagem utilizada é confusa não por acaso (mulher ajustando o vestido, a gravata atrás) É para ler com reflexão.

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  4. Marisete, obrigado pela presença. Tenho lido seus blogues e me divertido muito. É claro que sempre comentar as "artes" de pessoas queridas fica qualquer coisa como "chover no molhado", mas faz um bem danado. Beijos, piazinha!

    Jorge, às vezes a "estranha, misteriosa e doce força do amor" tem caminhos insuspeitos... E, querido amigo, não foi "criado", nem houve tanta "imaginação": diríamos que foi baseada em fatos quase reais...
    Abração, Mestre.

    Guilherme, o "eletro-cardiograma" é correto. A forma como se tratam (a ironia do "princesa", "Chamou-o de babaca"), as atitudes do cão revelam o fim de linha, dentre outros "sintomas". Obrigado pela força, e pelo entendimento.
    Forte abraço.

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  5. MILTON MARTINS9/12/09 21:19

    Caio
    Vou ser simplista e não farei nenhuma interpretação. Só sei que nessa de "linguagem cúmplice dos corpos", muitos adjetivos ofensivos se derretem ainda que apenas naqueles instantes de 5, 10 minutos...E podem até se estender em laços de ternura e perdão.
    Abraço.
    Milton Martins (SP)

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  6. Milton, muito bom, ver você por aqui. Longe de simplista, seu comentário é pontual e objetivo. É como diz, não importando o tempo, se houver confiança. Sem esta, não há o que estender, senão o conflito e catar os cacos depois.

    Abração, meu amigo.

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Na busca da excelência aprende-se mais com os inimigos que com os amigos. Estes festejam todas nossas besteiras e involuímos. Aqueles, criticam até nossos melhores acertos e nos superamos.

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