24 de out. de 2010

A AMANTE DO ANARQUISTA

Caio Martins
Para Jeanne

Apaixonara-se, tardiamente e inutilmente, por aquela mulher feita de mistérios e encantamentos. Lera todas as cartas cuidadosamente escritas em papel-linho e letra clássica perfeita, de tom azul-escuro e impecável na composição, sem assinatura. Intelectual, culta e judiciosa, nem por isso deixava ao acaso encantamentos e magias femininas, certo charme sóbrio e instigante. Restava ainda raro fragmento de alguma essência tão sutil que tornara-se, com o tempo, quase imperceptível. Dizia, num trecho da última:

“... e tens, quiçá, certeza deste teu querer que me dizes assim tão forte, se sabes que é impossível e que somente a loucura ou a tragédia honrariam? Ousas tanto por tão pouco, meu querido amigo... Nada sou senão folha que águas definitivas levam, no rio da vida e tu, pássaro de voo alto, aos ventos, no tumulto das tempestades. Chegasses tempos idos e saber-se-ia quê seria, se deuses ou demônios outro destino se nos oferecessem? Não há que nisso pensar... Ater-se a sonhos e utopias, hoje, seria por demais penoso e indesejável por inatingível. Tens tua vida e teus caminhos, eu os meus. E “Se vires que pode merecer-te/ Alguma coisa a dor que me ficou/ Da mágoa, sem remédio, de perder-te”, lembra-te que não saberei jamais de tuas carícias, nem tu de meu dispor. Não te sendo possível ser apenas e tão somente meu amigo querido, tiras-me a decisão do prazer de ter-te confidente, e me obrigas a não mais escrever-te. Eis que me impede, a honra, de transgredir compromissos assentes e invulneráveis... A menos, como eu disse, quiséssemos a tragédia, filha dileta da loucura...”

Um convite, talvez? Casada! Era casada... Por isso não assinava. Faltavam-lhe as cartas do outro jamais encontradas, mas intuía o conteúdo, quisera saber-lhe da forma e se também tão refinada. Certamente, uma dama. Como seria, como se vestiria, como andaria, comeria, choraria, cheiraria, riria, amaria? Seria desbragada e louca, ou pudicamente quieta como que contendo um vulcão? Num trecho de outra incidia, após discutir causticamente Bakunin e o Tomismo declinante:


“... Não me digas tais tolices, a elas sou alheia... Como ousas pensar em minha pele, meu calor, que se amenos são por femininos e portanto idênticos a todas as mulheres, apenas a ti te chegam por sermos naturalmente tão desiguais, porém intelectualmente tão semelhantes? Aqui, querido amigo, residem os laços: te amas em mim, porque te reconheces. Não são bem aceitas as que, como eu, invadem teus domínios e se apossam do privilégio de teus conhecimentos. O que nesse campo houver e vier a existir, é de meu interesse e gosto, me fascina, mesmo que me censurem os homens por intrometida e as mulheres por atrevida; tal peso não me arca, mas não serei por nenhum, jamais, considerada promíscua pois que motivos não os darei... Não me digas o que dizes, entre mesuras e mesinhas, às que te facilitam a saciedade de teus impulsos. Fala-me sem jaças de teus pensamentos, digas como vês o universo e o mundo, luta comigo por tuas idéias, ideais e conceitos sem tremores, e homenageia-me com a delicadeza de jamais esqueceres que sou como tu, porém diferente, por mulher. Tens meu carinho e afeto.”

Durona! Casada com marido toupeira... Sem dúvidas, um mercador, militar, navegador, membro da corte, beócio prepotente que, contando moedas, acharia estar cumprindo sua função social... Por certo, para transbordar luxúrias, meter-se-ia em bordéis para perfazer, com prostitutas, as esbórnias que conceitos arcaicos o impediriam com a esposa. A esta caberia certamente a administração doméstica, a criança dos filhos e a apresentação em cerimoniais nos quais posaria, patética, de mulher de fulano de tal, e transar por um buraco na camisola... Mal amada? Provavelmente. Porém, lia. Sabia das visões de mundo, ávida por debatê-las sem arroubos e valentias por amante das refregas, nas quais o argumento valeria mais que exóticos bigodes, vozeirões e medalhas no peito. Por isso, o fascínio pelo outro, parco em posses e definitivamente pródigo em prosopopéias...

Catou, desconsolado, a pasta com as velhas cartas recém descobertas num relicário de antiga escrivaninha, desligou o computador e meteu-se na garoa fria, ruas molhadas e multidão bovina, inconformado por não viver há mais de século atrás e conhecer a mulher sem nome que, por certo, o amaria. Como ao silente bisavô boêmio, músico, poeta e anarquista.

(img: o nascimento de vênus - alexandre cabanel) (v.califórnia, 22/10/10)

20 de out. de 2010

PRAÇA DA SÉ

Caio Martins









(img:cvm - torres sé - 2007)

Escadas rastejantes jogando
pasadas de bípedes cansados
zumbindo passivamente
saio do buraco
do metrô na Sé.

Cara a cara
com a negra torre do relógio
martelando vagarento sete horas
nos seus mecanismos atrozes
de solução final.

A Praça da Sé se move.

A catedral arrota
medieval solilóquio
de seu bojo estufado.

A catedral estatela-se
de costas, com graça
de gorda matrona gótica
de torres como ameaçadoras tetas
espetando a escuridão pastosa,
escadas de cabeleira
cheia de insetos transitando
em suas bocas.

A catedral boca.

Rara soma arderá
em seus altares solífugos,
enquanto Cristo passeia, cósmico
por outros mananciais.

A Praça da Sé se move.

O camelô vende milagres
um pivete vende santinhos
a zabumba bumba
funcão agastado
a xoróca zabaneira
e vunge
vunza no bolso do otário
que vasconceia, lúbrico
lambidas em seu pescoço.

Na distância de um pulo
a menina canta hinos
às bestas do apocalipse
o fim dos tempos
a palavra final...
Sedutora
vozinha
afinadinha
fatal...

A sanfona agita a bunda
tremelica os peitos
de cafona moça seminua
abrindo coxas e braços
e a dentadura alva
enrubescendo a calva
do marco-zero da cidade.

Não quer ser salva...

A menina hina hinos
olhando faceira o menino
que vende santinhos roubados
da mesa dos cardeais.
A polícia policia
suspirando aliviada
após a tensão formidável
de concentração sindical.

Na catedral o cardeal
absolve e o gado
se retira do quintal.
Em roda
ladrões, pivetes, saltimbancos
travecos, profetas, mascates
traficantes, bicheiros, ladrões,
vigaristas, craqueiros, putas
rondam a multidão passiva
entrassaindo do metrô
e a zabumba bumba um funcão
a catedral sina seu sino
os pregadores ameaçam o universo
e as bestas do apocalipse saem
dançando funque-forró.

A Praça da Sé comove
como a carcaça de um cão
atropelado e marginal
esfarrapado, e só.

(Pensão da Zulmira - 13/07/1987.)

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