Caio Martins
(o beijo - pablo picasso - 1931)
Tudo complicado. Enrolado demais, duas cabeças em alta rotação, o mundo espiando e rindo, no fundo um cenário de tempestades. Nenhuma mulher chamara mais a atenção, ela passara a ser-lhe o centro cósmico, o vetor, tudo reduzido aos olhos escuros, os cabelos rebeldes, a boca de menina chorona, os traços severos do rosto, o jeito de maria-moita. Ele alfa, safado diplomado em escolas privadas e públicas, de quartos de virgenzinhas ansiosas a pródigos bordéis...
Amor? Antes fosse... Paixão! Entregara-se feito um pacote sem remetente, aberto, pronto para uso. Contra a vontade própria, mas inerme ao tal de Destino (Sujeitinho canalha!)... Ela dissera-lhe isso: - Destino! E quebrara-lhe a couraça, a coragem suicida, o ímpeto de guerreiro. Apatetou-se da maneira mais vergonhosa. Aliás, ambos... Ah!, noites insones, espera angustiada de um telefonema, um e-mail, tremenda e apavorante luta contra sentimentos, batalhas catastróficas contra os instintos, gritos estonteantes de guerra contra a sensação de perda antecipada, ante a trombada com o impossível de quem jamais se dera por perdido... Estava perdido...
E então, decisões firmes e irrevogáveis tomadas, resgate de todas as armas, artes, manhas e recursos, montado numa determinação heroica de romper os próprios limites e cortar os vínculos, descobre, desacorçoado, que ela sentira sua falta... Que não gostara nem um pouquinho disso... Que queria tratar do assunto com toda a seriedade! Mulher imprevisível... Quase criança, nascera adulta... Nada dominava do mundo dos lençóis, mas definia, dona, suas essências.
Claro: fossem simples, comuns, gente como toda a gente, e tudo seria fantasticamente fácil. Mas, não eram, não... Eram complicados, cheios de teorias e padrões, eram mentais, cerebrais, donos de muita determinação, cada qual espiando o outro de suas trincheiras e posições, firmes e decididos, heroicos e retumbantes... patéticos, enfim. Não poderiam senão tratar do tema “- Não quero perder você!” - rindo?... ou chorando, qual a diferença? As multidões se movem pelas tripas... assim, os amantes...
Horas de abobrinhas, reticências, vazios mentais tentando serem preenchidos com explicações até que bem ajambradas... E, então, veio festa de fim de ano e o beijo. Nada altamente preparado, erótico-vampiresco, tonante, devorador, sôfrego, estilo encontro de buracos-negros galáticos, voos desorbitantes de línguas, mãos, braços e pernas em convulsão, babas e pulsações, pornocinematográfico: beijo besta, delicadinho, gentil, improvisado, tímido, sem querer... Com jeito de ternurinha boba, com alento suspenso, coisa de criança levada, de primeiro beijo... Toque mudo e suave de lábios sem roteiros, bocas ingenuamente premeditadas mas, assim mesmo, leve sufoco sem esfregação subsequente. Beijo-beijo...
Desses que não acontecem mais, kantianos sem tempo nem espaço, que jamais se repetirão por mais que se repitam, fora de moda. Nada mudou, depois. Somente alguma coisa girou ao contrário nos confins cósmicos, perderam-se algumas galáxias, explodiram algumas nebulosas, num anteprelúdio de fim do mundo. Teria sido tudo mais simples, começassem por aí. Na falta de plateia, alguns anjos tontos, desinformados, seguramente aplaudiram. A Divindade, competente, fez-se de lesa, a saber de nada... estabelecera-se, após tanta negaça, a trajetória do desastre.
(scsul - 10/03/2001)